A ilusão da paixão do coração

         
     

Por Osvaldo Vieira de Matos

 
         

 

01/abril/2017

         
 

 

Quando as pessoas querem exprimir sentimentos e emoções, em 99,99% dos casos usam o coração como  referência. Vejamos só três  exemplos:

 

1º) “Meu coração não sei porque, bate feliz quando te vê...” Trecho inicial da letra de Carinhoso, imortal música de Pixinguinha e João de Barros.

 

2º) Num programa de caráter cultural-científico, uma TV aqui do Brasil afirmou que o coração é o órgão mais importante, pois “comanda todo o nosso corpo, até os sentimentos”.

 

3º) Num  programa radiofônico religioso, o seu brilhante apresentador ao citar uma  mensagem de amor e perdão, declarou de forma eloquente e categórica que seria importante e indispensável que aquela mensagem não ficasse somente na mente, mas que também chegasse ao coração do ouvinte, naturalmente que através da aorta ventricular carótida lateral esquerda.


Entretanto, a realidade é que o coração (ou músculo cardíaco), a exemplo de órgãos como os  pulmões, fígados, rins, útero, pele, visão e  pâncreas, não pensa, não raciocina, não possui inteligência e daí ser impossível exprimir qualquer forma de emoção ou mesmo armazenar sentimentos como ódio, amor, fé e todos os outros inerentes ao ser humano. Claro que é o nosso cérebro, ou seja, a nossa mente,  a única responsável  por tudo isso. Comparando-se com a tecnologia da informática, é como se o cérebro fosse um “hard” e a mente um “soft”.


Se alguém muito caridoso, prestimoso, religioso, amoroso, ou mesmo “jeitoso e fogoso”   receber através de transplante o coração de um assassino cruel, frio,  estuprador  e ateu, o caráter do primeiro (receptor) não será alterado, ele continuará como sempre, mesmo recebendo o coração de um perigoso marginal..

 

Breve, quem tiver problemas cardiológicos irreversíveis, terá um coração artificial movido à bateria. Só não pelo SUS. Lógico que essas pessoas com coração “de mentira” também irão amar, sentir emoções e ter fé como todos os normais.

 

No primeiro exemplo acima (letra musical), a referência ao coração é algo normal, pois apesar do seu sentido figurado, metafórico, transmite uma conotação romântica e poética à música.

 

No caso do programa da TV (2º exemplo), é inadmissível  que se queira misturar realidade com ficção, ao se afirmar num programa educativo que o coração é o órgão mais importante, que comanda o nosso corpo e os nossos sentimentos. Ora, cientificamente a definição de morte se dá é no momento em que o cérebro (e não o coração) para de funcionar. Assim, o cérebro é que é o órgão mais importante do nosso corpo.

 

Por fim, é claro, evidente e óbvio, que não só na música como em homilias, poemas, artigos, frases, cantadas de namorado, discursos políticos, etc, o coração seja citado como referência ao amor. O que é uma grande bobagem é se dizer que um sentimento, uma mensagem não pode ficar somente na mente e que deve chegar até o coração, pois isso já não se constitui mais um caráter de sentido figurado e sim uma metáfora descabida. Hoje em dia muita gente “culta” gosta de misturar em falas mente e coração. Pra que isso?

 

Já vi pessoas exclamar para outra: “Sua mente manda você `fazer isso´, mas seu coração diz que não”. Quer dizer, a mente pensa de uma forma e o coração de outra. Que interessante, os dois órgãos discutindo. O coração diz pra mente: “Ohhh, você é tão cruel, desalmado,  insensível”. A mente responde: “Que nada, você é que é um maricas,  cheio de frescura, uma Maria vai com as outras”. O fígado, coitado, vendo isso, fica morrendo de vergonha, contraindo até hepatite.

 

No Antigo Testamento o coração é citado 853 vezes e no Novo 159. A  Bíblia cristã cita  esse  músculo como fonte dos sentimentos, emoções,  intelecto, enfim, o centro da vontade humana.

 

Na bíblia judaica, a Torá, a palavra coração aparece 190 vezes.

 

O Alcorão dos islâmicos, cita a "inteligência do coração" como sendo a combinação do amor e da inteligência.

 

A grande questão é que a cultura judaica do passado, os autores bíblicos, os escribas, julgavam que as coisas eram assim. Eles desconheciam o papel específico do coração na circulação sanguínea,  só  descoberto no século 17 pelo médico anatomista inglês William Harvey. Hoje se sabe que em emoções fortes as glândulas supra-renais liberam a adrenalina que acelera o batimento cardíaco, mas na realidade a maior ou menor sensibilidade das pessoas, a bondade e a ruindade, a fé ou descrença, estão é na mente mesmo, queiram ou não.

 

Neste sentido, é preciso cuidado para que a fé não se sobreponha à razão e a inteligência humana. Depois da vida, a inteligência é o maior dom que o Criador nos concedeu. O conhecimento humano cada vez mais cresce e evolui. Ele não pode ficar estagnado. Isto faz parte do processo Criativo.

 

No passado, as religiões tinham “explicações” para tudo que a natureza humana e a ciência  desconheciam. E tais “explicações” eram extraídas, segundo interpretações em cada época do texto bíblico.

 

Já li vários artigos de cunho religioso cristão criticando as afirmações científicas de que  é no cérebro que se concentra a fonte da razão humana, pois contradiz  os ensinamentos bíblicos, significando assim que a ciência quer mostrar que a Bíblia está errada. Trata-se aí de uma interpretação  extremamente fundamentalista e ignorante.

 

Coração é um órgão comum a todos os animais, possuindo aí funções idênticas. Já a inteligência, é oriunda exclusivamente da mente humana. Tal fato independe de fé, de qualquer forma de crença religiosa. A ciência é puro resultado da inteligência humana, maior dom do Criador. Lógico que ciência e fé se complementam. Isso não tem nada a ver com a existência de cientistas ateus. Também existem pessoas religiosas com a Bíblia na mão, que são verdadeiros picaretas, que exploram a fé dos incautos. O que é pior?

 

Hoje, quando alguém é caridoso, diz-se que tem o coração grande, enorme. Já no Egito antigo, quando alguém morria, o coração era pesado numa balança. Se fosse leve, o morto era considerado uma pessoa de bem e seria levado para a companhia dos deuses. Caso contrário,  seu lugar era no mundo das trevas, da escuridão. Se essa moda pega, haja IML.

 

De certa forma o povo das pirâmides tinha razão. Coração grande, pesado, não é boa coisa. Se o seu cardiologista disser que seu coração está crescendo, provavelmente você estará com miocardiopatia congestiva dilatada (assim me parece). Haja dinheiro pra remédio.

 

Já os sacerdotes astecas, no México,  costumavam arrancá-lo do peito dos inimigos vivos para oferecê-lo aos deuses, conforme está ilustrado em um templo de Chichén Itzá, naquele país. Que bobagem. Se eu fosse um deus asteca iria preferir coração de galinha assado num espetinho, ao invés de coração de guerreiro vivo, cheio de sangue. Que nojeira.

 

Por volta do século 3, Santo Agostinho dividiu o amor em dois tipos: O amor a Deus e o amor material. Aquele Santo pregou o primeiro e usou o coração como símbolo desse sentimento, por estar associado à sede da alma,  que evoca o que há de mais sagrado na religião. "Santo Agostinho difundiu a ideia de que o símbolo do amor exclui o sexo e prioriza a alma", explica Edgard Leite, professor de história das religiões da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mas o amor profano, dos enamorados, também evocou o coração nos romances de cavalaria, nas trovas medievais e, muito mais tarde, na literatura romântica.

 

No século 19 e início do século 20, grandes escritores como Balzac, Flaubert, Zola e mais adiante Proust e Gide, evitaram evocar o coração como sinal de amor, por estar associado a imagens vulgares e sentimentais. Ele tornou-se um símbolo comercial. É hoje um dos ícones mais usados no mundo. Está representado em objetos, joias, biscoitos, utensílios, slogans, propagandas políticas, de motéis e até em roupas íntimas.

 

Que se dê ao coração uma conotação romântica, mas também não custa se conhecer a verdade, que  isso não corresponde ao funcionamento biológico e anatômico do ser humano, afinal estamos no século 21. Me impressiona é que muita gente ainda hoje, até  com formação acadêmica,  acredita piamente que esse órgão é  realmente o centro das nossas emoções. Elas  parecem desconhecer o puro sentido figurado dessa questão.

 

Se o coração fosse a fonte do amor, não mandaria quase 160 mil brasileiros e 30% da população do planeta todo ano pro cemitério.  Na realidade, ele é um grande “amigo do peito” dos donos de laboratórios farmacêuticos e de funerárias.

 

Já que falamos do coração, como vai sua pressão arterial? 13 por 8? E o colesterol? E a relação entre o HDL e o LDL? Cuidado com o LDL, ele  não é nada romântico, pois manda qualquer um lentamente pro cemitério.

 

Agora veja como sou um cara chato da “gota serena”, como diz o nordestino. Para os outros, coisas do coração significam sentimentos bons como  amor, ternura, bondade, fé e outros. Já para mim este músculo lembra ou é sinônimo de Unimed, SAMU, OSAF, hospital, farmácia, cardiologista, tensiômetro, holter, eletrocardiograma, ecocardiograma, cintilografia, angiografia, coronariografia, cateterismo, teste de esforço, pressão arterial sistólica e diastólica, pulsação, colesterol, estatina, trigliceres, angina, arritmia, disritmia, isquemia, miocárdio, endocardite, pericardite, infarto, derrame, chagas, trombose, safena, higroton, ácido acetilsalisílico, cooper, natação, sedentarismo,  dieta, sal, obesidade, tabagismo, alcoolismo e muito dinheiro pra remédio.

 

Sei não..., acho que na minha última “encarnação” fui um médico legista, dono de funerária, coveiro ou trabalhei no IML. Valha-me meu São Cipriano, minha Nossa Senhora do Amparo das Almas Penadas e todos os deuses astecas. Bem, uma coisa para mim é totalmente inexplicável e diferente das pessoas normais. Enquanto tem gente que não se sente bem ao entrar num cemitério no caso do enterro de alguém, lá, eu me sinto totalmente a vontade.

 

 

 

Osvaldo Vieira de Matos

Natural de Aracaju/SE, casado, Professor aposentado da Escola Técnica Federal de Sergipe (hoje IFS), onde lecionou as cadeiras de Projetos de Redes Elétricas, Desenho Técnico e Transformadores. Integrou o corpo técnico da então Empresa Distribuidora de Energia em Sergipe S/A – ENERGIPE, como eletromecânico. Atuou como Coordenador do Núcleo de Eletrificação Rural daquela empresa, durante 17 anos. Como representante da então ENERGIPE participou de simpósios sobre eletrificação rural nas cidades de Acapulco no México e Lima no Peru. Atualmente, há vários anos que se dedica como voluntário na SOFISE – Sociedade Filarmônica de Sergipe, na correção de textos de trabalhos publicados, edição de vídeos e no programa radiofônico Sementes Musicais.